“Eu não sou um fóssil, sou um míssil.”
Waly Salomão
A Casa de Vidro (www.acasadevidro.com) reúne neste espaço uma coletânea-amálgama com as canções que, através da história da música brasileira, desde o Tropicalismo até nossos dias, beberam na fonte fecunda que foi Waly Salomão (1943 – 2003). “Tenho fome de me tornar tudo o que não sou”, dizia Waly. Segundo Leminski, “essa fome se traduziu, com exuberância, num percurso vivencial e criativo em que Waly, se não chegou a se tornar tudo, foi muitas coisas” (Leminski, Veja, 10/8/1983).
Antonio Risério, tentando resumir o irresumível, arriscou: “pensamento agudo, língua afiada, voz de trovão, o baianárabe Waly é um happening ambulante. Um trickster. Uma verdadeira monta-russa de grossura e de finesse, indo das baixarias de botequim à suprema limpeza do construtivismo de Maliévitch.” Foi também Waly o “audaz navegante da Navilouca junto com Torquato Neto, mas tendo por timão as invenções de Oiticica”, como relembra Davi Arrigucci Jr, que destaca ainda: “o poeta retornava à raiz da modernidade e a Poe, evocando a concepção da poesia sob o signo de Proteu: da mudança ou da metamorfose, que ora assume e reafirma com força plena.” (p. 476).
Suba o volume, escancare os sentidos e boa jornada pelas Walycanções!
Seleção de canções por Eduardo Carli & Diego de Moraes
A FÁBRICA DO POEMA
Waly Salomão & Adriana Calcanhotto
In memoriam Lina Bo Bardi (1914-1992)
Sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite da pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará?
OUÇA:
Por Lirinha (Cordel do Fogo Encantado)
[youtube id=https://youtu.be/aZDoj941V4c]
Por Adriana Calcanhotto
[youtube id=https://youtu.be/jzLvaGxus_8]
MUSA CABOCLA
Waly Salomão e Gilberto Gil
Uirapuru canta no seio da mata
Papagaio nenhum solta um pio
Sereia canta sentada na pedra
Marinheiro tonto medra pelo mar
Sou pau de resposta, gibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
Coração pipoca na chapa do braseiro
Sou baunilha, sou lenha que queima
Que queima na porta do formigueiro
E ouriça o pelo do tamanduá
Mãe matriz da fogosa palavra cantada
Geratriz da canção popular desvairada
Nota mágica no tom mais alto, afinada
Sou pau de resposta, jibóia sou eu, canela
Sereia eu sou, uma tela sou eu, sou ela
[youtube id=https://youtu.be/PNr8lf43cOY]
[youtube id=https://youtu.be/6MmT_wfDzeY]
ALTEZA
Waly Salomão e Caetano Veloso
Quando meu homem foi embora
Soprou aos quatro ventos um recado
Que meu trono era manchado
E meu reino esfiapado
Sou uma rainha que voluntariamente
Abdiquei cetro e coroa
E que me entrego e me dou
Inteiramente ao que sou
A vida nômade que no meu sangue ecoa
Abro a porta do carro fissurada
Toma-me ao mundo cigano
E sou puxada por um torvelinho
Abraça a todos os lugares
Chamam por mim os bares poeirentos
E eu espreito da calçada
Se meu amor bebe por lá
Como me atraem os colares de luzes
À beira do caminho
Errante, pego o volante
E faço nele o meu ninho
Pistas de meu homem
Aqui e ali rastreio
Parto pra súbitas, inéditas, paisagens.
Acendo alto o meu farol de milha
Em cada uma das cidades por que passo
Seu nome escuto na trilha
Aldeia da Ajuda, Viçosa
Porto Seguro, Guarapari, Prado
Itagi, Belmonte, Prado
Jequié, Trancoso, Prado
Meu homem no meu coração
Eu carrego com todo cuidado
Partiu sem me deixar nem caixa-postal, direção
Chego a um lugar
E ele já levantou a tenda
Meu Deus! Será que eu caí num laço
Caí numa armadilha, uma cilada
E que este amor que toda me espraiou
Não passou de uma lenda
Pois quando chego num lugar
Dali ele já levantou a tenda
A tenda
OUÇA COM BETHÂNIA:
[youtube id=https://youtu.be/pCEDo4WWKsY]
TALISMÃ
Waly Salomão e Caetano Veloso
Minha boca saliva porque eu tenho fome
E essa fome é uma gula voraz que me traz cativa
Atrás do genuíno grão da alegria
Que destrói o tédio e restaura o sol
No coração do meu corpo um porta-jóia existe
Dentro dele um talismã sem par
Que anula o mesquinho, o feio e o triste
Mas que nunca resiste a quem bem o souber burilar
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?
Minha sede não é qualquer copo d’água que mata
Essa sede é uma sede que é sede do próprio mar
Essa sede é uma sede que só se desata
Se minha língua passeia sobre a pele bruta da areia
Sonho colher a flor da maré cheia vasta
Eu mergulho e não é ilusão, não, não é ilusão
Pois da flor de coral trago no colo a marca
Quando volto triunfante com a fronte coroada de sargaço e sal
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?
Sim, quem dentre todos vocês
Minha sorte quer comigo gozar?
OUÇA COM BETHÂNIA:
[youtube id=https://youtu.be/8rtkoBkwgXQ]
ASSALTARAM A GRAMÁTICA
de Waly Salomão, Musicada por Lulu Santos
Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia
na bagunça do dia a dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica
Meteram poesia
onde devia e não devia
Lá vem o poeta
com sua coroa de louro,
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta
do planeta!
(Malagueta!)
OUÇA COM PARALAMAS NO SUCESSO (Ao vivo no Rock in Rio 1985)
[youtube id=https://youtu.be/-6Qdi4p3rXY]
MAL SECRETO
Waly Salomão e Jards Macalé
Não choro,
Meu segredo é que sou rapaz esforçado,
Fico parado, calado, quieto,
Não corro, não choro, não converso,
Massacro meu medo,
Mascaro minha dor,
Já sei sofrer.
Não preciso de gente que me oriente,
Se você me pergunta
Como vai?
Respondo sempre igual,
Tudo legal,
Mas quando você vai embora,
Movo meu rosto no espelho,
Minha alma chora.
Vejo o rio de janeiro
Comovo, não salvo, não mudo
Meu sujo olho vermelho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quieto,
Corro, choro, converso,
E tudo mais jogo num verso
Intitulado
Mal secreto.
OUÇA COM JARDS E FREJAT
[youtube id=https://youtu.be/JmUBUhMWUmI]
OUÇA COM WALY E LUIZ MELODIA
[youtube id=https://youtu.be/q8lqNLr-3c4]
REAL GRANDEZA
Álbum de Jards Macalé: As parcerias com Waly Salomão
[youtube id=https://youtu.be/_ToWv8e6b6s]
1 – 00:00 – Olho de Lince; 2 – 04:20 – Rua Real Grandeza; 3 – 07:30 – Senhor dos Sábados; 4 – 10:38 – Anjo Exterminado; 5 – 13:53 – Dona de Castelo; 6 – 17:20 – Vapor Barato; 7 – 21:52 – Mal Secreto; 8 – 25:40 – Negra Melodia; 9 – 29:59 – Revendo Amigos; 10 – 34:51 – Berceuse Crioulle; 11 – 38:09 – Pontos de Luz.
VAPOR BARATO
Waly Salomão e Jards Macalé
Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio
Eu vou tomar aquele velho navio
Aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro,
Graças a Deus
E não me importa, e não me importa não
Oh minha honey baby, baby, baby
Honey baby
Sim
Eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu estou indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto, quem sabe
Mas eu preciso
Eu preciso esquecê-la
A minha grande
A minha pequena
A minha imensa obsessão
A minha grande obsessão
Oh minha honey baby, baby, baby,
Honey baby
OUÇA COM O RAPPA:
[youtube id=https://youtu.be/ilBIkv09xAA]
ANJO EXTERMINADO
Waly e Jards
Ouça com Adriana e Jards
[youtube id=https://youtu.be/ErPWpkje7Xs]
ZONA DE FRONTEIRA
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco
Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir
Já
Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
Sim
Mas é preciso ser sutil
Pois justo na terra de ninguém
Sucumbe um velho paraíso
Sim, bem em cima do barril
Exato na zona de fronteira
Eu improviso o brasil.
Rei
Eu sei que sou
Sempre fui
Sempre serei
Oba
De um continente por se descobrir
Já
Alguns sinais
Estão aí
Sempre a brotar
Do ar
De um território que está por explodir
E
Minha cabeça voa assim
Acima de todas as montanhas e abismos
Que há no país
Mas algo chama a atenção
Ninguém jamais canta duas vezes uma mesma canção.
[youtube id=https://youtu.be/I16TaNHI_rY]
Do álbum Zona de Fronteira, que inclui 12 faixas, a maioria delas parcerias entre Waly, Bosco e Cícero.
Ouça mais uma canção deste disco abaixo:
HOLOFOTES
Waly Salomão, Antonio Cícero e João Bosco
Dias sem carinho
Só que não me desespero:
Rango alumínio
Ar, pedra, carvão e ferro.
Eu lhe ofereço
Essas coisas que enumero:
Quando fantasio
É quando sou mais sincero
Desde o fim da nossa história
Eu já segui navios
Aviões e holofotes
Pela noite afora.
Me fissurarm tantos signos
E selvas, portos, places,
Línguas, sexos, olhos
De amazonas que inventei.
Eis a Babilônia, amor,
E eis Babel aqui:
Algo da insônia
Do seu sonho antigo em mim.
Eis aqui
O meu presente
De navios
E aviões
Holofotes
Noites afora
E fissuras
E invenções:
Tudo isso
É pra queimar-se
Combustível
Pra se gastar
O carvão
O desespero
O alumínio
E o coração
OUÇA:
[youtube id=https://youtu.be/BH9xeUhBta0]
SALOMÃO, Waly. Poesia Total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 549 p. 13,5×21 cm. ISBN 978-85-359-2400-8 Capa e projeto gráfico: Elisa von Randow. Foto da capa: Marcia Ramalho. Antologia com toda a obra poética do autor, em ordem cronológica. Inclui também uma fortuna crítica ao final. COMPRAR LIVRO NA LIVRARIA A CASA DE VIDRO.
SINOPSE – Waly Salomão foi uma das figuras mais fecundas e heterogêneas da vanguarda brasileira. Não é à toa que Caetano Veloso, em música dedicada a ele, diz: “tua marca sobre a terra resplandece […] e o brilho não é pequeno” (ouça abaixo). Baiano, filho de sírio com sertaneja, Waly foi ponta de lança de uma geração de poetas que — num movimento de resistência à censura — contrariaram os princípios formais da tradição e pensaram a produção literária a partir de sua articulação com as outras artes, o que contribuiu para sua escrita tão permeável às diversas manifestações do inquieto cenário cultural no Brasil das décadas de 1970 e 1980. Seus versos continuaram se reinventando ao longo dos anos 1990 e 2000, e consolidaram seu papel de poeta múltiplo em livros como Algaravias, lançado em 1996. Poesia Total reúne pela primeira vez a obra poética completa de Waly Salomão, desde Me segura que eu vou dar um troço, de 1972, até Pescados vivos, de 2004. O volume traz ainda uma seção de canções inéditas em livro, além de apêndice com os mais relevantes textos sobre sua obra, assinados por nomes como Antonio Cícero, Francisco Alvim e Davi Arrigucci Jr. Em Gigolô de Bibelôs, seu segundo livro, o seguinte verso ecoa: “tenho fome de me tornar em tudo que não sou”. Tal desejo de abolir fronteiras e de confronto com os limites — entre o eu e o outro, entre a prosa e a lírica, entre a arte e a vida — é uma das principais marcas da obra de Waly Salomão. Poesia total é uma viagem sem volta: um “processo incessante de buscas poéticas”, como disse o próprio autor sobre seu trabalho poético-visual, os Babilaques.
[youtube id=https://youtu.be/TwqtLPG8MoI]
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Publicado em: 23/11/17
De autoria: casadevidro247
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia
Gisele
Comentou em 24/11/17